Dois mil e catorze, ano e tanto. Ano
difícil para muita tanta genteix, para tanta e tão disso falado que foi e virou
lugar comum. Mas que lugar. Ano encerrando. Ainda sem cantar vitória porque
bicho assim é de cuidado. Ano ruim, verdadeiramente ruim para muita gente
próxima. Muitas daquelas daquestas mortes. Para mim, lá no particularzinho, não
foi um ano ruim. Ano forte, difícil, de cabra ao sol. Isso foi. Curvaturas do
universo na ordem do mar bravo e gelado do Atlântico Sul. Tensões, dores, muita
angustia, ansiedades em mais-valias pós-desterritorializantes, divórcios,
perguntas difíceis, alegrias, potentes encontros com o eu/nós dividual
cyborgiano cthulu(s)cênico, desconfianças ferinas, insultos, profundezas que os
imanentesistas do anti-intuito detestam, perguntas de I Ching, medo, choros
longos nos braços mais queridos, o nascimento do São Francisco que secou, e um
amor que raia entre as nuvens, os morros, as ondas e a loucura de um jeito feliz
que me parece que nunca vi. Ah, esse amor
aqui de casa...
Dois mil e catorze parece ter sido o ano em
que o naufrágio se fez materialidade inescapável; em que o navio despedaçou-se
por completo. Quando o naufrágio fez-se impossível de eludir em ficções
persuasivas ou seilágênicas. É ver o desastre e a sua própria mão segurando
ainda restos do leme e os corpos, os corpos mortos ou feridos que no capitão
confiaram, vê-los passar por você... Ver, na cara de onda após onda nesse
Pacífico irônico, o desintegrar de todos os artifícios. E sentir o cansaço
enorme e arrasador amarrado nos pés, reptando pelos braços no sentido de
enforcar o sorriso e o desejo. Mas ver essas imagens, sentir esse corpo, a
memória, é saber que se sobreviveu ao naufrágio; que, a pesar de tudo, está-se
vivo e presente. Está-se aqui, até aqui nos trouxe a sereia, sob esse céu lindo
nessa imensidão jamais imaginada. O desintegrar é uma nova vida, uma brasa, a
ventania de uma nova potência que começa no lugar exato onde tudo quebrou.
Agora é preciso nadar. Quando navegar não é
mais possível e apenas, sim, viver. Ah, preferir os remeiros aos poetas...
Restabelecer uma vida possível. Nadar braço a braço, devagar, sabendo respirar
para chegar um dia, sem brilho, sem gênio, e lidando com o pavor enorme que
esse mar me produz; achar as parcerias que brilham por aí como peixes de
penumbra, saber pedir, tentar saber que há uma praia em algum lugar e tentar
pensar que é possível chegar. E talvez essa praia não esteja na fantasia da
ousadia individual, e quiçá essa praia sejam toras flutuantes, alheias, ou
esteja no meu serviço para o sorriso dela, no entregar-se de marujo a uma
tripulação que melhor saiba conduzir. Precisamos agora, todos os que aqui
habitamos, de uma sincronia mínima ao nadar, um ser baixinho, descomposto,
sabendo-nos precários pela primeira vez e sabendo claramente da nossa
capacidade de destruição (navio de guerra), sabendo do desequilibro nefasto, e
tendo claro nos restos de escamas y en la
mirada tudo aquilo de mais belo e de melhor que somos... É preciso nadar,
apenas, porque a sereia perdeu guelra.
Dois mil e catorze encerra assim: na
multiplicidade intensa de sentimentos e pensamentos, na vida em tetris oceânico
desorganizado, em projetos lindos e vitais que nasceram enquanto tudo afundava,
(transformados em respiração boca-a-boca, em restos preciosos de navio levados
pelas correntezas, em ração enlatada, em convite à criação). Dois mil e catorze
vai chegando nos seus últimos dias com esse cansaço milenar de mim mesmo e do
mundo, mas deixando um sorriso de esperança e amor no corpo inteiro. Quando é
bom que agora, agora, a chuva não dê sinal... A vida, toda, em
uma mucosa morna e úmida para começar de novo; aqui, agora, sem fugas nem mais
ficções que essa (e que algum sonho), sem recuos.
Nadando, bebericando água salgada do mar do Rio brindo com um espumante cor de rosa com e pelxs amigxs mais queridxs, pelxs pessoas tão lindas que encheram esse ano de possibilidades e alegrias, de força e companhia. Contigo. Desde esse lugar desejo para mim e para
todxs nós um ano de vidas e celebrações, de iluminações preciosas no olhar, de
amores que floresçam com pétalas fortes, de menos injustiças e dores, de mais
amizades e encontros no lazer, nas bandas de rock, no futebol, na
palavra-gargalhada. Um ano de lutas firmes e fortes por mundos melhores... e
menores. Que saibamos recolher-nos e fazer-nos pedacinho, fogo firme e
constante no coração, renuncia justa, meia-luz, amor.
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