terça-feira, 14 de junho de 2016

...as mortes, as mortes, as mortes...

...as mortes, as mortes, as mortes... Essas malditas mortes de ódio que sempre nos acompanham, que tanto fazemos para não ver, e que sempre fazem questão de habitar o espelho.


essas malditas mortes, cheias de vida, são a vida mesma toda concentrada no último dos seus gemidos. maiúsculo, grotesco, perdido... esquartejada, a vida; massacrada, estuprada, abolida. há muito tempo, insisto, que o mundo acabou...

outra vez as bichas assassinadas; o arco-íris outra vez quebrado pela incapacidade absoluta de amar, de respeitar, de sentir, de imaginar... ou sei lá. não sei. não sei. um homem, uma metralhadora, um mundo convulsionando nas articulações do dedo... não sei.

outra vez a moça assediada, acuada no ônibus, na casa, na igreja na sala de aula. outra vez a moça estuprada por trinta homens que se divertiam, por trinta homens que desejaram, que simplesmente podiam... e outra vez os eles estupradores arrebentados, machos crucificados, moídos em pedacinhos para serem devorados pela justiça-carniça... e tudo continuar igual


outras vez as putas sendo governadas por médicos, por policiais, por demónios legislativos e por feministas que lhes cospem bílis na cara querendo salvá-las, possuí-las, congelá-las. E outra vez o silêncio de quem não deveria estar calada...

...outra vez o sangue na terra e a terra no sangue que ainda brotava do corpo, os corpos baleados, os pescoços atravessados por tantas facadas como moscas, as calcinhas... que merda, sempre as calcinhas manchadas, rasgadas, sem importar o que guardavam dentro...

há quem chore orlando e não chore as duas travequinhas pobres e pretas da baixada -filhas elas de puta pobre e preta-.
há quem chore a moça estuprada e aproveite esse choro para maldizer às putas, algemar às putas, insultar as travas, maldizer as travas, algemar às travas as putas e excluí-las em siglas fascistas... ou deixa-las aí, algemadas a um post...

há quem nunca soube do professor rasgado a facadas de ódio em tabatinga, ou dos milhares de maricas que os paracos torturaram e assassinaram na colombia-e-por-aí-vai...
há quem nao quer nem ouvir sobre assédios e estupros, sobre cruentas vinganças, sobre violências que são mais que concertos em bemol...
há esses machos jovens pobres e talvez pretos -cisheteroscoisahorrível- que matam, comem do morto e morrem para alimentar o hype da favela, a compaixão, o armorio, as verdades que mais nos servem...

há o pó... há o chumbo... há o sangue, o sémen, as secreções vaginais, o cagaço... o suor latejando, a grana gozando, a fumaça que nos deixa loucos... o cheiro viciante das lágrimas alheias, a melodia meio-dia de uma confissão, e o aroma glorioso de uma mulher salva, resgatada, convertida.  

há vermes, também, que não distinguem: comem, cagam, golpeiam, governam e legislam.


mortes estas malditas mortes que não acabam com todos nós de uma vez só, tão obedientes as malditas mortes aos desígnios da economia, dos racismos, dos machismos, dos modernismos, dos iluminismos....

Um comentário:

Luisa B disse...

São reflexões interessantes. Quer dizer: isso não define. Reflexões urgentes? - acho que seria mais próximo. Reflexões sobre assuntos gritantes. O problema é que o grotesco da vida, o "horror cósmico", pelo menos a mim me escapa, porque tudo o que eu quero é uma toca quentinha. É difícil poetizar, é difícil saber como agir e não ficarmos apenas falando coisas poéticas, profundas e sábias.
O máximo que eu consegui fazer neste sentido em 46 anos de andanças por este mundo foi me conhecer melhor e com mais honestidade, com menos medo, o que me levou a conhecer o mundo - essa pontinha de mundo que avisto de minha toca - da mesma forma: com menos medo, com mais empatia, com menos vontade de domina-lo. Acho que é possível sim, porque eu consegui não me deixar matar (foi por pouco), cuidar de mim e do que estão em volta e continuar a sonhar grande, irredutivelmente grande.